Confira esta reflexão necessária feita pela diretora-executiva do Tecendo Infâncias, Adriane Menna Barreto*

Ontem (26 de maio de 2025) acordei lendo uma reportagem da Exame sobre tecnologias emergentes: identidade digital, inteligência artificial e blockchain, e como essas ferramentas vêm redesenhando, rapidamente, as formas de acessar direitos, organizar políticas públicas e tomar decisões sobre a vida em sociedade.

Elas prometem mais agilidade, precisão e integração. E temos lido muito sobre isso. Mas me deu vontade de iniciar um debate do ponto de vista do terceiro setor, que conhece profundamente os territórios do nosso país, tão diverso, plural e marcado por desigualdades estruturais.

O texto já estava quase pronto pra publicar aqui, quando, à tarde, assisti ao lançamento do e-book Ciência da Primeira Infância, no Insper. E qual não foi minha alegria ao perceber que o que escrevi estava bastante alinhado ao que ouvi no evento especialmente nas falas da Mariana Luz e da Priscila Cruz.

O e-book lançado na tarde de ontem, organizado por Naercio Menezes Filho e publicado pelo Centro Brasileiro de Pesquisa Aplicada à Primeira Infância (CPAPI), reúne conhecimento científico atualizado, com linguagem acessível e foco em soluções aplicadas para o contexto brasileiro. Um verdadeiro tesouro nesse mar de ausência de dados sobre a infância no nosso país. Acesse aqui.

Mas voltando ao texto que iniciei pela manhã, acredito que há uma pergunta essencial ainda pouco debatida:Como as novas tecnologias podem ampliar o conhecimento que temos sobre a vida das famílias e de suas crianças, ajudando a criar soluções mais adequadas para seu pleno desenvolvimento?

Todos concordamos que é necessário unificar os sistemas públicos, mas o dever de casa é imenso para que essa integração seja real e efetiva.

No Instituto Tecendo Infâncias, atuamos em diversos locais do Brasil, colaborando com o desenvolvimento de crianças de 0 a 6 anos em territórios profundamente desiguais. E é a partir do que vi e vivi nesses lugares que afirmo: não há futuro digital justo se as famílias continuarem invisíveis, e se a desigualdade não for enfrentada desde o desenho dessas soluções.

Identidade digital é porta de entrada ou barreira?

Quando uma criança nasce, a identidade digital pode ser sua primeira entrada e a confirmação oficial de que ela existe para um sistema robusto e integrado. Isso pode parecer trivial em cidades onde a internet funciona bem, os equipamentos públicos estão estruturados e as equipes sabem lidar com tecnologia.

Mas em muitas regiões do Brasil, esse cenário ainda está longe de ser realidade. Sem conectividade, sem capacitação adequada e, em alguns casos, sem sequer energia elétrica, como vimos nas comunidades do sertão que conhecemos com os Amigos do Bem e nas aldeias e comunidades do Rio Arapiuns (Santarém, PA), com o PSA – Projeto Saúde e Alegria , a identidade digital corre o risco de se tornar mais um fator de exclusão.

Essa exclusão pode se agravar, sim, se não forem considerados, com muito cuidado, os contextos territoriais e as exigências de atualização contínua que um sistema integrado requer para funcionar de forma justa e eficaz.

Ainda hoje, em muitas regiões do país, registrar uma criança exige vencer barreiras logísticas. Famílias percorrem longas distâncias e, muitas vezes, não compreendem o funcionamento dos equipamentos públicos. Já os serviços locais, por sua vez, nem sempre têm estrutura ou profissionais capacitados para oferecer suporte e manter cadastros atualizados. E não estou falando apenas de cidades remotas. Basta uma visita a um CRAS no Rio de Janeiro para perceber a precariedade. Na última unidade que visitei, havia apenas dois notebooks, velhos, lentos, colados com fita adesiva.

Se essas questões não forem enfrentadas com políticas públicas específicas e com atenção às desigualdades territoriais, a tecnologia que poderia incluir pode acabar aprofundando distâncias e gerar dados distorcidos e enviesados, sem utilidade real.

Dados integrados para decisões mais justas

Um dos maiores potenciais das novas tecnologias, se bem implementadas, está na possibilidade de integrar dados entre setores e territórios. Isso permitiria decisões públicas mais rápidas, coordenadas, econômicas e eficazes.

Lembro da época em que trabalhei no Instituto Dara (RJ) e dos casos complexos de saúde de crianças atendidas ali. Imagine, por exemplo uma criança com histórico clínico delicado, em tratamento há anos em um hospital público. Mas um dia, a família precisa mudar de cidade. No novo hospital a nova equipe médica começa do zero. A família não sabe explicar com exatidão o que foi feito, muitas vezes nem mesmo o diagnóstico. E a equipe não tem acesso ao prontuário anterior. Isso aumenta os riscos e compromete o cuidado. Com dados integrados, isso poderia ser evitado.

O mesmo vale para a educação. Em um sistema intersetorial, seria possível identificar crianças fora da escola ou com frequência irregular, cruzando essas informações com dados da saúde, assistência ou segurança. Em situações mais graves, a combinação de ausências escolares e atendimentos hospitalares repetidos pode indicar sinais de violência doméstica. São dados fundamentais que, se bem utilizados, podem prevenir e proteger.

Dados que pertencem às pessoas, não aos setores

Esse futuro só será viável se superarmos uma lógica ainda dominante no poder público: a de que os dados pertencem às secretarias setorizadas, e não às pessoas. Vi isso de perto ao trabalhar na implementação do Programa Cuidar. Profissionais muitas vezes não compartilham informações com colegas técnicos de outras secretarias porque acreditam que os dados são “seus”.

A tecnologia de identidade digital tem o potencial de mudar essa lógica. Os dados passam a pertencer à família, que pode autorizar seu compartilhamento com os profissionais responsáveis por seu cuidado.

Isso fortalece a autonomia, a continuidade dos atendimentos e a corresponsabilidade entre políticas públicas e instituições. Também permite encontrar respostas mais estruturadas para situações complexas. E reforça a intersetorialidade como prática real, não apenas como discurso.

O que já temos e o que ainda falta

O Brasil conta com o Cadastro Único, um instrumento essencial para identificar famílias em situação de vulnerabilidade. Ele tem ampla cobertura e é porta de entrada para políticas sociais. Mas ainda não se conecta de forma eficaz a outras bases de dados.

Essa é uma realidade nacional: multi-sistemas que não conversam entre si, coleta de dados repetida, sem atualização clara. E muitas vezes ninguém sabe qual é a versão mais confiável da informação.

Além disso, os dados existentes são escassos, fragmentados e frequentemente desatualizados. Sem isso, fica difícil criar políticas públicas baseadas em evidências e adaptadas à realidade local.

A urgência da ética e da integração

Com a digitalização crescente dos serviços públicos, é urgente garantir que as tecnologias estejam a serviço do cuidado, da equidade e da qualidade. Isso exige sistemas integrados, proteção efetiva de dados pessoais e escuta ativa dos territórios.

A proteção de dados precisa seguir a LGPD, claro. Mas junto ao legislar, é preciso construir confiança, mediação e participação. É necessário respeitar o tempo das famílias e os diferentes contextos culturais do país.

Também precisamos formar profissionais para usar as informações geradas. Um sistema só entregará aquilo que for corretamente inserido nele. É preciso muito cuidado na coleta e na leitura dos dados, para que possam ser utilizados de forma transformadora.

Não se trata de substituir profissionais. Muito pelo contrário. Precisamos capacitá-los para usar a tecnologia em favor das famílias que atendem.

O papel da sociedade civil

Organizações da sociedade civil ocupam um lugar estratégico para conectar a inovação tecnológica às realidades dos territórios.

Iniciativas como o Projeto Infância Inclusiva, executado pelo CIEDS que o Instituto Tecendo Infâncias apoia em Pacajus (CE), levam informação e conhecimento às famílias, por meio de visitas domiciliares, e fazem a ponte com os equipamentos públicos.

São essas organizações que podem traduzir os sistemas, garantir o uso ético da tecnologia e influenciar políticas públicas com base em evidências e no conhecimento do território. Elas chegam onde o Estado não chega. Mas para isso, precisam de legislações que as reconheçam e apoiem, para que façam bem o que já sabem fazer, e com escala.

Identidade digital, inteligência artificial e blockchain podem sim ampliar o acesso a direitos, integrar setores e melhorar os serviços públicos. Mas para isso, precisam ser construídos com escuta, responsabilidade e compromisso com a equidade e com a qualidade. E precisam seguir sendo ferramentas que apoiam o trabalho humano de quem está em contato direto com as famílias.

Não basta digitalizar sistemas. É preciso garantir que cada família e cada criança, em qualquer território, seja reconhecida, protegida e acompanhada com dignidade.

Tecnologia só gera justiça quando está a serviço da vida.

*Adriane Menna Barreto atualmente ocupa o cargo de Diretora Executiva do Instituto Tecendo Infâncias, filantropia estratégica com foco no desenvolvimento de crianças na primeira infância. Tem experiência no setor privado, público, e no setor cidadão, na gestão de pessoas, processos e recursos.